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segunda-feira, 23 de abril de 2012

Animais não-humanos: eles realmente são protegidos no sistema jurídico brasileiro?


Por Cristiano Lange dos Santos e Marcelo Sgarbossa
Recentemente em Porto Alegre, ativistas e entidades protetoras dos animais organizaram uma manifestação (Crueldade Nunca Mais) com o objetivo de atentar para os constantes casos de maus tratos aos animais na cidade.
Nas redes sociais também circula uma mensagem contra a realização da Farra do Boi, manifestação cultural realizada usualmente na quaresma e na época da Páscoa, terminantemente violenta aos animais, oriunda da região Ibérica e levada para a Ilha de Açores, e consequentemente, trazida com a imigração açoriana para o litoral catarinense. Aliás, foi proibida pela crueldade com que os animais são sujeitos.
E não se trata de uma iniciativa local ou regional, mas de uma tendência mundial.
Para termos uma ideia, na Espanha, no ano passado, a pressão dos grupos que militam a favor dos direitos dos animais, fez com que o Parlamento banisse com as históricas “touradas” na região da Catalunha. A proposta foi interposta por meio de iniciativa popular, que significa a mobilização massiva da população manifestando seu desejo em prol do projeto de proibição dessas atividades.
Baseado nesses recentes e importantes acontecimentos, perguntamos: os animais não humanos são tutelados juridicamente? ou melhor, os animais tem direitos no sistema brasileiro?
Podemos, com toda a certeza, afirmar que sim.
No entanto, destacamos que a proposta aqui é discutir a temática numa perspectiva jurídica, sem adentrar no campo da ética, embora essa seja o fundamento para o debate em questão já que as duas esferas frequentemente se interpenetram, no momento da feitura ou aplicação do ordenamento legal. Recomendamos a leitura do filosofo norte-americano Tom Reagan sobre os direitos dos animais.
Os animais humanos são classificados segundo o modelo Kantiano baseado no critério de racionalidade: animais humanos (homens e mulheres) e animais não-humanos (animais).
Além dessa classificação entre animais humanos e animais não–humanos, há ainda os sencientes, seres vivos que também sofrem física e psiquicamente, possuindo um sistema nervoso e um cérebro desenvolvido. Quer dizer que ambos os animais (humanos e não-humanos) são sujeitos a dor e sofrimento, razão pela qual a justificativa para também tutelar a dignidade dos animais não-humanos.
Nesse sentido, discriminar um animal senciente apenas porque ele não é humano configura-se especismo, que tem sido considerado, a titulo exemplificativo, semelhante a situações de racismo ou do escravismo.
Especismo é o preconceito ou atitude tendenciosa de alguém em favor dos interesses de membros de sua própria espécie e contra a de outras.
Assim, se animais também são sujeitos à dor e sofrimento, logo, são equiparáveis aos humanos no quesito dignidade.
Essa é a questão, tanto que nas últimas décadas houve um avanço considerável, no que tange ao reconhecimento dos valores protetivos da natureza e da garantia aos direitos dos animais contra as crueldades e maus tratos relacionados aos animais não-humanos.
No âmbito internacional é importante mencionar a Declaração Universal dos Direitos dos Animais da UNESCO, proclamada em 1978, sendo revisado novamente em 1989, pela Liga Internacional dos Direitos dos Animais, e publicada em 1990. Na declaração consta expressamente o direito de todos os animais serem respeitados e protegidos pelas pessoas e pelo Poder Público e de viverem em ambientes biologicamente equilibrados.
Já em âmbito nacional, vale lembrar que a Constituição Federal de 1988, inovou ao estabelecer um capítulo específico sobre o meio ambiente, no qual ampliou os conceitos de proteção aos recursos naturais e aos animais, de modo a implementar a teoria antropocêntrica alargada, ao propor uma abordagem diferenciada que centra a preservação ambiental na garantia da dignidade do próprio ser humano, reconhecendo sua importância diante de todo o sistema.
Além dos direitos fundamentais, desenvolveram-se também estudos sobre os deveres fundamentais com vistas a promover programas e políticas públicas para garantir o reconhecimento de tais direitos.
Com efeito, nesse sentido, é imperativo destacar que a Teoria dos Deveres Fundamentais, cuja premissa atribui que todos os Poderes Públicos em conjunto com a coletividade tem a obrigação de defender e preservar tais direitos de modo a assegurar a efetividade constitucional.
Pretende-se dizer que os Poderes Públicos tem a obrigação prestacional, buscando um comportamento positivo (fazer) ou negativo (não-fazer) relacionado aos direitos constitucionais. Poderia citar como um comportamento positivo, uma política pública de controle de zoonoses, e comportamento negativo, como a criação de uma política pública de fiscalização contra maus- tratos a animais domésticos (cães, gatos e principalmente cavalos).
A Lei 9.605/1996 regulamenta as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, incluindo tipos penais contra a fauna. Um exemplo da lei é o artigo 32, que estabelece prisão de três meses a um ano, a quem cometer maus-tratos, ferimentos e mutilação de animais.
Interessante citar também, o leading case do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 153.531/SC, em que o Min. Marco Aurélio, já se posicionou sobre a temática, ao proibir a realização da Farra do Boi:
Costume – Manifestação cultural estímulo – razoabilidade – Preservação da fauna e flora – Animais – Crueldade. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do art. 225, § 1º, VII, da CF, que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade, como é o caso da conhecida ‘farra do boi’ (RE 153.531/SC, 2ª Turma, rel. Min. Marco Aurélio, 03.07.1997).
Há inúmeras outras decisões, na mesma linha de entendimento, a fim de preservar a dignidade dos animais não-humanos contra os maus tratos e contra qualquer tipo de crueldade promovida pelos animais humanos.
Vale dizer que caminhamos para a consolidação desse entendimento de modo a garantir efetivamente a integridade dos animais, como integrantes do todo, que é o sistema natural.
A plena preservação dos recursos naturais, incluindo-se a garantia de todas as formas de vida humana, parte dessa novo redimensionamento das relações humanas.
Assim, como o humano deve respeitar o valor intrínseco do seu semelhante humano, o humano também deve respeitar o valor intrínseco de outros animais não-humanos independente de sua espécie. É um direito relacionado à igualdade dos seres.
Essa é uma garantia para continuarmos evoluindo em matéria de proteção e garantia contra os maus tratos e a crueldade aos animais não-humanos.
Cristiano Lange dos Santos é advogado. Especialista e Mestre em Direito, foi Professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da Anhanguera de Passo Fundo. Atua como Procurador Jurídico do Laboratório de Políticas Públicas e Sociais – LAPPUS.
Marcelo Sgarbossa é advogado. Mestre em Análise de Políticas Públicas pela Universidade de Turim (Itália) e Doutorando em Direito pela UFRGS, professor da ESADE e Diretor-Geral do Laboratório de Políticas Públicas e Sociais – LAPPUS.

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